A passagem acima é uma das mais conhecidas em se tratando de diários de escritores. Seja pela comicidade da paixão avassaladora à primeira vista (quem nunca?) ou pela familiaridade com a impulsividade da compra (quem sempre?), nós rimos. Comigo aconteceu algo similar e já antecipo: foi menor que um cavalo. Irei me explicar nas próximas linhas. E não, eu também não precisava daquilo. Mas enfim, “não sei, só sei que foi assim” (já diria, Chicó).1
Alguns anos atrás, o curta-metragem “O Poeta do Castelo” (1959) apareceu pra mim em alguma pesquisa procrastinatória no Youtube (o link está aqui. Sugiro assistir após a leitura. É muito bonito). Dirigido por Joaquim Pedro de Andrade, o curta de dez minutos mostra o cotidiano do poeta Manuel Bandeira. Um dia banal (há dias banais para poetas?): dirigir-se até o secos e molhados com passos vagarosos, ligar o fogão, esquentar o café, atender o telefone, vasculhar a estante procurando livros. Em um desses momentos, Manuel Bandeira compra leite, uma ação, a princípio inofensiva não fosse pelo fato de ser o estopim do que viria a ser minha mais nova obsessão.
Num passado não muito longínquo, os leites não “nasciam” envasados em caixinhas, mas sim colocados em garrafas de vidro. Em seguida, eram deixados bem cedo na porta das casas por leiteiros, cargo este infelizmente extinto. A pequena propriedade do senhor leiteiro que tive a sorte de conhecer deu lugar a um condomínio brega com fachada de shopping. A crise da (des)harmonização facial também vem acontecendo na arquitetura. Nesse caso, é a predial.
Enfim, o curta mostra a cena de Manuel comprando o leite engarrafado. Uma garrafa transparente com uma vaquinha na frente e as letras CCPL2. Nada demais, certo? Errado. Temos aqui o gatilho do que viria a ser uma jornada intensa pelos confins da internet atrás da bendita garrafa. Eu cismei com a garrafa de leite. Não sei o porquê, não me pergunte. Podemos cogitar uma esperança infantil de que o gênio da lâmpada estivesse agora na garrafa de leite? Talvez. Gastaria um dos desejos pedindo um pouco da mocidade de volta, aquela que perdi chorando (não é mesmo, Cartola?)3
O mercado das coisas antigas é um mundo mágico sem fim. Você procura um determinado objeto e acaba se deparando com dez outros interessantes. É preciso cautela e foco. Achei que seria rápido achar a tal garrafa e estava enganada. Nas andanças virtuais, descobri que existe outro modelo, bem mais comum. Só que é outra vaquinha - diga-se de passagem até mais simpática - mas eu queria a bendita garrafa que Manuel segurava, com a vaca sisuda mesmo.
De tanto fuçar pra cima e pra baixo, achei a garrafa. Mas não seria tão fácil assim. Ela estava em um leilão online. Aqueles que você dá lances, “dou-lhe uma, dou-lhe duas...”, esses aí mesmo. Como se a minha ansiedade normal não fosse o bastante, eu iria participar de um leilão e disputar a garrafa com pessoas que eu sequer conhecia mas já xingava mentalmente.
Vou tentar resumir o processo: você faz o cadastro no site de leilões, ganha uma cartela com número, espera o dia e hora, aguarda o lote e o maior lance leva pra casa. O problema está justamente na etapa do lance. Você dá o seu, bem humilde, e vem um fulano sei lá de qual esquina do planeta e bota um valor maior. Você então manda outro lance um pouquinho maior e espera aquele martelo bater de uma vez pra não perder mais dinheiro. “Será que essa pessoa tem a obsessão da garrafa também? Não importa. A garrafa será minha.” Não recomendo leilões para quem tem um espírito competidor.
Ao todo foram sete lances até o bater do martelo virtual. A garrafa está aqui em casa. A princípio sem gênio, mas sã e salva. Desde então tenho evitado novas obsessões. E leilões.
Citação que li por aí:
Entrevistador: Você tem mais de cem livros publicados. Qual segredo da produtividade?
César Aira (escritor argentino): “Começar. As ideias surgem a partir do ato de escrever.”
Filme/série que vi por aí:
“O Canto Livre de Nara Leão” - Documentário em 5 episódios. Disponível no Globoplay.
Abraços literários,
MM
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Chicó: personagem de Ariano Suassuna na peça “Auto da Compadecida” (1955);
CCPL: sigla para Cooperativa Central dos Produtores de Leite;
Trecho que está na canção “O Sol Nascerá” de Cartola;